quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Tempo & Vida

A crítica contra a religião desde o séc. XVIII, o século das luzes, bem como a actual crítica da modernidade, uma coisa têm em comum: A recusa de Deus. E podemos constatar que, no TEMPO em que vivemos, a objecção feita contra Deus converte-se, progressivamente, numa objecção contra o homem. Com a “morte de Deus”, o homem ficou só e resta-lhe apenas a possibilidade de, sem Deus, se revoltar contra si. A “morte de Deus” é um peso que o homem não consegue suportar acabando, neste processo, por ser ele mesmo o homicida e a vítima.

São Paulo aos Romanos afirma que o homem é vítima de si próprio e não uma vítima de Deus: “Tendo conhecido a Deus, não o glorificaram nem lhe deram graças, como a Deus é devido. Pelo contrário: tornaram-se vazios nos seus pensamentos e obscureceu-se o seu coração insensato. Afirmando-se como sábios, tornaram-se loucos e trocaram a glória do Deus incorruptível por figuras representativas do homem corruptível, de aves, de quadrúpedes e de répteis. Por isso é que Deus, de acordo com os apetites dos seus corações, os entregou à impureza, de tal modo que os seus próprios corpos se degradaram. Foram esses que trocaram a verdade de Deus pela mentira, e que veneraram as criaturas e lhes prestaram culto, em vez de o fazerem ao Criador, que é bendito pelos séculos! Ámen. E como não julgaram por bem manter o conhecimento de Deus, entregou-os Deus a uma inteligência sem discernimento. E é assim que fazem o que não devem: estão repletos de toda a espécie de injustiça, perversidade, ambição, maldade; cheios de inveja, homicídios, discórdia, falsidade, malícia; são difamadores, maldizentes, inimigos de Deus, insolentes, orgulhosos, arrogantes, engenhosos para o mal, rebeldes para com os pais, estúpidos, desleais, inclementes, impiedosos.” (Rom 1,21-25.28-31)

Mas, de todas as experiências negativas que advêm da revolta do homem contra si mesmo como consequência do seu afastamento de Deus, ocupa um lugar central a morte, como situação de vértice. Não é evidente o que seja a morte. Mais ainda, quando o homem se pergunta pela natureza da morte, não anda à procura de uma resposta. A grande intenção desta pergunta é interrogar-se sobre a sua existência humana. Só depois de ter clarificado a natureza da morte, poderá, então, compreender a VIDA que cada um leva consigo mesmo e na relação com aqueles que o rodeiam.

A reflexão feita por Abraham Maslow a partir das Experiências de Vértice, como meio de compreensão do impacto que determinados acontecimentos podem ter no homem, evidencia o quanto estas experiências podem mudar a vida do homem, no relacionamento com o seu próprio Eu, com os Outros ou até com o Mundo que o rodeia. E nestas experiências , observa-se que o acto de morte no homem, leva-o a reconhecer a tudo o seu real valor.

Concretamente, o significado fundamental da existência do homem não pode estar na acumulação de bens, mas na acumulação de um bem superior. E sobre isto mesmo afirma o Papa Bento XVI falando aos jovens sobre o Papa João Paulo II: “não cedais à lógica do interesse egoísta pelo contrário, cultivai o amor ao próximo e fazei o esforço de colocar vós mesmos, com vossas capacidades humanas e profissionais, ao serviço do bem comum e da verdade, sempre dispostos a dar resposta a todo aquele que vos pedir razão de vossa esperança”.

Sem dúvida que a morte não acusa a inutilidade do ter como tal. A morte lança uma luz positiva sobre o significado próprio do ter e do agir do homem, ou seja, tudo tem sentido e é bom se serve à promoção do homem e do bem comum. E termino com São Paulo escrevendo aos Gálatas: “Pelo amor, fazei-vos servos uns dos outros. É que toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo. Mas, se vos mordeis e devorais uns aos outros, cuidado, não sejais consumidos uns pelos outros.” (Gl 5, 13-15).

Pasadas Pimenta
Omnes cum Petro ad Jesum per Mariam


Pintura a Cathedral (detail) de Jackson Pollock

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Tempo & Deus

Na vida, cada vez mais, temos de tudo excepto de tempo. Outrora, parecia haver em abundância o dom do tempo e, hoje, parece que desapareceu tal fartura. Este decréscimo parece ser hoje um problema e, de facto, assim é. É uma questão que afecta toda a dimensão da vida pessoal e relacional e, afectando a pessoa, afecta-se a sociedade e eis o resultado: Vivemos tempos de caos, de desorientação e de confusão.

Neste mesmo tempo que tem como espaço a sociedade, percebem-se várias tendências que têm como fim afastar abertamente Deus da vida do Homem. E com todas as argumentações e comprovações dizem-nos que é uma perda de tempo gastar o tempo, este bem tão precioso, com Deus. E o incrível é que isto já extravasou o domínio do ateísmo e do agnosticismo e também já chegou, com consequências práticas na vida dos cristãos, àqueles que, pelo baptismo, se tornaram filhos de Deus.

Friamente, digo: Relegaram o seu Pai para segundo plano e, consequentemente, o Seu dia, o único dia da semana dedicado a Ele: O Dies Domini (Dia do Senhor), o Domingo. O Papa Bento XVI, acerca disto mesmo, alerta dizendo: “O Domingo, na sociedade actual, transformou-se num fim-de-semana, isto é, tempo livre. E especialmente na pressa do mundo de hoje, o tempo livre é algo bom e necessário. Mas se o tempo livre não tem um centro interior, do qual provém uma orientação para o todo, acaba por ser um tempo vazio que não nos reforça nem recria. O tempo livre necessita de um centro o encontro com Aquele que é a nossa origem e a nossa meta”.

Aprofundando, através de alguns textos Bíblicos e Patrísticos o porquê da centralidade do dia de Domingo na Igreja, desde as suas origens, vemos como os cristãos tinham e tiveram sempre presente que “Sem o dom do Senhor, sem o Dia do Senhor não podemos viver”. Os próprios cristãos de Abitínia, actual Tunísia, no ano de 304, surpreendidos durante uma Celebração eucarística dominical que era proibida, foram levados diante do juiz e interrogados. Perguntou-se-lhes porque tinham realizado no Domingo a função religiosa cristã, sabendo que o facto era punido com a morte. Eles responderam: “Sem o dom do Senhor, sem o Dia do Senhor não podemos viver”.

Tinham consciência que, no Domingo, se vive o encontro com Cristo ressuscitado, na Palavra e no Sacramento. É a luz que ilumina a inteira realidade da pessoa humana e, por isso, “Sem o dom do Senhor, sem o Dia do Senhor não podemos viver”. É a luz que, como se canta no Precónio Pascal, “liberta das trevas do pecado e da corrupção do mundo aqueles que hoje por toda a terra crêem em Cristo”.

A Igreja, Corpo de Cristo, tem a sua origem no amor do eterno Pai. Celebrar o Domingo é actualizar esse amor como dom que salva. Se a Igreja se debilitar nesta consciência, deixará de tocar o Homem e a História e ofuscar-se-á a sua missão de reconduzir todo o género humano para Deus. Esta é a sua missão mas sem a consciência da importância do Dia do Senhor, continuará progressivamente o êxodo dos cristãos para fora da sua comunidade e o Domingo será apenas um bom dia para descansar.

Pasadas Pimenta
Omnes cum Petro ad Jesum per Mariam

Pintura Number 14: Gray de Jackson Pollock

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Mundo & Família

É nítido que, no seio da família, “originam-se tensões, quer devido à pressão das condições demográficas, económicas e sociais, quer pelas dificuldades que surgem entre as diferentes gerações, quer pelo novo tipo de relações sociais entre homens e mulheres” (GS 8).

O ponto de reflexão que esta semana venho propor tem, como ponto central, algumas questões em torno da família, em dois aspectos essenciais: Primeiro, numa linha de continuidade com a temática anterior em que se tratou do apostolado e do trabalho, no caso dos casais, a família deve ser o seu primeiro campo de apostolado (cf. GS 34). Em segundo lugar, os desafios que se colocam a partir de títulos saídos, na semana passada, tais como: “Há 72 divórcios por dia em Portugal” e “Casais não têm filhos”. Aqui deixo a minha proposta de reflexão.

D. Álvaro del Portillo, num pequeno livro sobre os leigos, apresenta de forma clara e sucinta porque deve ser a família o primeiro campo de apostolado: «A família é a célula primeira e vital da sociedade, e da sua saúde ou doença dependerá a saúde ou doença de todo o corpo social. A sociedade será mais fraterna, se os homens aprenderem na família a sacrificar-se uns pelos outros. Haverá mais tolerância e respeito nas relações humanas, na medida em que os pais e os filhos se compreendam. A lealdade ganhará terreno na vida social, se também se valorizar a fidelidade entre os cônjuges. E o materialismo baterá em retirada, quando o objectivo da felicidade familiar não seja o consumo crescente.».

A exemplo disso, João Paulo II no livro “Não Tenham Medo”, confidencia: «O meu pai foi uma pessoa admirável e quase todas as minhas recordações de infância e adolescência referem-se a ele (…). O simples facto de o ver ajoelhar-se teve uma influência decisiva nos meus anos de juventude. Era tão severo consigo próprio, que não necessitava de o ser comigo: bastava o seu exemplo para ensinar a disciplina e o sentido do dever».

É aqui que a unidade da família humana recebe um grande reforço e encontra o seu dever ser, ou seja, na família dos filhos de Deus. Porque a missão confiada por Cristo à sua Igreja é de ordem religiosa. E desta mesma missão religiosa deriva um compromisso, uma luz e uma graça que servem para a realização e consolidação da família e, por consequência, da sociedade (cf. GS 42).

O ritmo da vida actual não favorece esta missão. Cada vez mais, temos de tudo, excepto de tempo. Mas o futuro da família dependerá mais do tempo que se lhe dedicou do que do conforto que se lhe ofereceu.



Pasadas Pimenta
Omnes cum Petro ad Jesum per Mariam

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Mundo & Empenho

Como deve ser o modo de agir dos cristãos no mundo? É com esta pergunta que inicio este novo texto. E, sucintamente, respondo: O seu agir neste mundo deve ser caracterizado pelo empenho nas suas responsabilidades e pelo amor ao seu próximo (cf. Mt 22, 39). Para fundamentar e desenvolver esta minha resposta vou servir-me de duas obras concebidas no séc. II e III da nossa era. Num primeiro olhar, podem parecer muito distantes de nós e que nada de novo nos possam dizer mas, debruçando-nos mais profundamente sobre estes textos, percebemos que revelam grandes desafios para o mundo de hoje.

Desde a primeira hora, os membros das primeiras comunidades cristãs estavam conscientes de como devia ser o seu agir no mundo. Essa clara consciência levava-os, então, a um maior empenho no cumprimento dos deveres correspondentes à sua posição na sociedade. Num documento da antiguidade cristã, Epístola a Diogneto, 5 (séc. II) lemos: «Os cristãos não se distinguem dos outros homens pela sua terra, nem pelo seu falar, nem pelos seus costumes: porque não habitam em cidades exclusivamente suas, nem falam uma língua estranha, nem levam um género de vida diferente dos restantes (…). Habitam em cidades gregas ou bárbaras, de acordo com a sorte de cada um, e adaptando-se à forma de vestir, de comer, e ao modo de vida, aos usos e costumes do país, com uma conduta peculiar que é admirável e, segundo declaração de todos, surpreendente». E Tertuliano, no seu livro Apologético, 42 (séc. III), escreve: «Vivemos como os outros homens; não passamos sem a praça, o talho, os banhos, as lojas, os alfaiates, as hospedarias, as feiras e tantos outros comércios. Convosco também navegamos, convosco somos soldados, lavramos o campo, dedicamo-nos ao comércio, exercitamos os nossos ofícios e expomos para vosso uso as nossas obras».

É segundo este seu empenho que podemos compreender que, permanecendo no seu lugar, os primeiros cristãos tenham melhorado a sua conduta e mudado notavelmente a da sociedade em que habitavam. Se por volta do ano 60 São Paulo advertira os Filipenses nestes termos: «Trabalhai com temor e tremor pela vossa salvação. Pois é Deus quem, segundo o seu desígnio, opera em vós o querer e o agir. Fazei tudo sem murmurações nem discussões, para serdes irrepreensíveis e íntegros, filhos de Deus sem mancha, no meio de uma geração perversa e corrompida; nela brilhais como astros no mundo» (Fl 2, 12-15). Pouco tempo depois, na Epístola a Diogneto, 5, já lemos: «Casam-se como todos; como todos têm filhos, mas não abandonam os que nascem (…), estão na carne, mas não vivem segundo a carne, passam o tempo na terra, mas têm a sua cidadania no Céu. Obedecem às leis estabelecidas, mas com a sua vida superam as leis.».

Como consequência dessa atitude e da actividade apostólica, o cristianismo estendeu-se, em pouco tempo, de um modo assombroso a todo o Mundo. Não estranha, portanto, que o próprio Tertuliano pudesse escrever no Apologético, 1: «Somos de ontem e já enchemos o orbe e todas as vossas coisas: as cidades, as ilhas, os povoados, as vilas, as aldeias, o exército, o palácio, o senado, o foro».

Se ao começar este texto iniciava-o com uma pergunta, gostaria de terminá-lo, agora, com duas: Os cristãos de hoje estão a conseguir transformar o mundo em vez de se deixarem transformar por ele? Estando presentes nas várias estruturas da sociedade e nas mais diversas funções, os cristãos estão a dar testemunho do Evangelho sendo luz do mundo e sal da terra?



Pasadas Pimenta
Omnes cum Petro ad Jesum per Mariam